Illustrations for a guide book of Paris finest pastry shops por HSIAO-RON CHENG

Hilda tinha o hábito de distribuir doces. Assim, simples e gratuitamente. Ela fazia isso de bom grado, pelo simples fato de querer agradar as pessoas. Ela acreditava que ao fazer isso, teria a estima dos outros. Para alguns presenteava com cestas fartas, para outros com pequenas porções. Em alguns casos ela mesma preparava os doces, afinal algumas pessoas possuem certas alergias ou intolerâncias, mas na maioria eram doces que ela adquiria de terceiros. Eram doces variados, ora de tabuleiro, ora de colher e até mesmo alguns folhados bem trabalhosos e demorados de se fazer. E Hilda fez isso por toda a sua vida. Se tinha doces nas mãos, os distribuía.

Exatamente por ser uma amante de doces foi que começou esse hábito. Ela atribuía que os doces a tornariam mais amável, mais agradável e até mais desejável. Porém, quando adolescente houve um terrível acontecimento. Um desses típicos caras malandros que vivia agarrado em uma estimada amiga, estava sempre petiscando os doces que Hilda dava afetuosamente a ela. Certa vez ele até chegou a dizer que Hilda teria todo o amor que ela sempre sonhou se lhe desse alguns doces. Mas ela não queria lhe entregar doce algum. Não para ele. Ela tinha nojo dele. Porém ele tomou mesmo assim. Ele não tomou com força física, mas ele tinha uma fala mansa, era chantagista. Por ser suja e vazia, tal lembrança foi muito bem escondida pelo cérebro de Hilda, mas agora ela não tinha mais nojo deste malandro, mas sim paúra. E aí, eis que então, noutro dia esta memória ressurgiu, como uma bailarina quando abrimos uma caixinha de jóias.

Além deste, outros acontecimentos recentes fizeram com que ela colocasse a distribuição de doces em questão. Já havia algum tempo que ela escutara de uma comadre, enquanto esta e outras estavam no carteado com Hilda, que os doces dela estavam um pouco puxados no açúcar – mas deixara claro que não era sempre, mas que quando acontecia, incomodava a sensibilidade dos dentes dela. Entretanto ela dissera ser agradecida pela boa vontade de Hilda.

Todavia aquilo bateu mal em Hilda. Ela nunca pensou que seus doces poderiam causar incômodo nos dentes de alguém. Ela sempre quis apenas proporcionar um momento de prazer e conforto com seus doces e jamais algum prejuízo. Esse dia ficou no fundo da memória de Hilda como aquela coceira na garganta que arranha quando vamos dormir ou quando estamos numa sala de espera em silêncio.

Em seguida, seu marido a culpou de estar muitas vezes nauseado por causa dos doces. Noutro dia ele se queixou de que ela estava dando doces demais a ele. E isto doeu como receber uma paulada, porque muitas vezes foi ele quem pediu os doces a Hilda. Quantas vezes nos finais de semana ele pediu uma sobremesa? E ainda ameaçou que se ele apresentasse sinais de diabetes, seria por obra dela e essa mania de doces. Mas era ele quem chegava com tantos pedidos e até mesmo com chocolates para comerem juntos.

Ela se sentiu envergonhada por sair por aí dando coisas nauseantes e que causavam incômodos nos dentes dos outros, enquanto ela julgava estar distribuindo coisas gostosas e reconfortantes. Hilda queria sumir, fugir, mudar de nome, de país, de cor de cabelo. Queria entender como nunca conseguiu perceber que um hábito que julgava ser tão bom era na verdade inconveniente.

Illustrations for a guide book of Paris finest pastry shops por HSIAO-RON CHENG

E pela primeira vez em toda sua história percebeu que isto precisava ser uma permuta justa. Hilda viu que, sim, estava simplesmente dando doces sem nem ao menos ser solicitada e isso não fazia o menor sentido. Ela não queria parar de distribuir doces, porque isso dava prazer e alívio a alguns, mas agora ela reconhecia que precisava de limites e negociações.

Ela tentou fazer isso guardando todos os doces para si, mas acabou comendo demais sozinha, teve dor de barriga e teve pessoas à sua porta esmurrando com agressividade exigindo o que ela sempre deu de boa vontade. Ela não sabia mais o que fazer. Ela se sentia perdida e ferida. Ela não sabia se queria continua sendo aquela Hilda, a mulher que distribuía doces.

Decidiu então procurar especialistas e eles lhe fizeram diversas perguntas interessantes. Perguntaram a que pessoas ela distribuía os doces e o porquê dessa escolha. Perguntaram também porque ela havia começado a fazer isso.

E daí a ajudaram a montar um plano de estratégia. Ela percebeu que não precisava doar tantos doces e muito menos para qualquer pessoa. Ela recebia alguns e redistribuía, mas precisava aprender a negá-los ou até mesmo aceitar doces diferentes de outras pessoas que ela nunca sequer pensou em aceitar e que só deveria distribuir a quem fosse merecê-los.

É uma tarefa árdua, trabalhosa e que consome muita energia mas os especialistas que cuidam dela e a auxiliam dizem que Hilda é muito determinada e  comprometida. Eles garantem, todas as vezes que ela os visita que, eventualmente, Hilda conseguirá dominar a arte de distribuir doces de maneira incrível e autônoma.

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